Sem os dois dentes pintados de crayon, sem a peruca que aumenta a careca agora natural e sem a fala meio afeminada – características de Zacarias, o mais ingênuo trapalhão dos Trapalhões – é difícil acreditar que Mauro Faccio Gonçalves surpreenda pela seriedade, meiguice e timidez. Ao contrario do que muita gente possa pensar, ele tem pouco a ver com seu personagem. Na vida real, não é malicioso nem afeminado. Não é engraçado nem infantil. E muito menos um trapalhão.
Pela sala austera do seu vasto apartamento no Posto Seis é possível entender um pouco deste homem. As muitas plantas espalhadas na varanda e a sobriedade da decoração revelam um morador sensível e sério. A religiosidade fica visível no destaque ao crucifixo, imponente, bem no meio do móvel principal. Tranqüilo, Mauro senta na beirada do enorme sofá de veludo verde e tenta explicar como um neto de sicilianos, mineiro de Sete Lagoas, religiosissimo, discreto, introvertido e um pouco mais tímido que o comum, se tornou um Trapalhão: “Claro que não sou engraçado naturalmente, não brinco com a vida nem com a morte. Só brinco em serviço. Um bom ator é aquele que sabe criar tipos, ser farsante, não ser ele mesmo. Faço isso. Sou o Zacarias, me escondo nele para sobreviver. Gosto do que faço. Acredito no humor e no seu resultado que ele provoca nas pessoas. Mas não posso negar que sou um pouco ele. No jeito criança, na ingenuidade, na alegria. Sou sim. Mas quem não é?”
E vai contando: lá mesmo, “na cidade do cristal e do mármore” – como ele gosta de chamar sua terra – começou a trilha que o levaria a ser uma dos humoristas de maior sucesso, no momento. Em Sete Lagoas ele fez quase tudo, ajudando o pai, Mariano Gonçalves, na loja de materiais de construção. Ao mesmo tempo, cursava o ginásio, fazia natação – 1.00 metrôs crown e muita garra. Aos 17 anos, estreiou como ator no grêmio teatral da Igreja de Santo Antônio. Na mesma época, entrou para o rádio – a Cultura de Sete Lagoas – imitando vozes e fazendo tipos.
Aos 23 anos fez vestibular para arquitetura em Belo Horizonte, sendo aprovado em 12° lugar. Mas só cursou um ano: o ator ia tirando o tempo do futuro arquiteto em novelas e programas de humor da Rádio Inconfidência, com tal de destaque, que chegou a ser capa da antiga e famosa Revista do Rádio recebendo o titulo de “galã favorito novelas”. Mas os tempos eram outros, “a profissão não era regulamentada, os salários muito baixos e eu precisava garantir o pão-de-cada-mês, ter um dinheiro regular que me desse segurança para prosseguir nas aventuras de ator.” Ai, virou bancário também, funcionário do Banco de Comercio e Indústria Minas Gerais. Da Rádio Inconfidência para a TV Itacolomi foi um nada!E, ali, começou a repercussão do humorista. Logo, um de seus bordões pegava fundo, ele crescia e ia aparecendo ao lado de Paulo Gracindo e Mario Lago, em outro programa de TV: Tribunal de Calouros. Da TV mineira, o caminho natural seria a TV carioca. E foi.
“Mas só aceitei o segundo convite. Manuel de Nóbrega me viu trabalhando e me convidou para vir para a TV rio. Tive medo. Como bom mineiro, eu tinha que temer largar o emprego no banco, abandonar uma vida muito boa, enfim, começar tudo outra vez. Juro que não tive coragem!”
E ficou. Mas ficou acreditando em destino. E o destino não o decepcionou. Pouco depois, em 1963, esqueceu as inseguranças financeiras, venceu o medo, jogou tudo para o alto e estreou na TV Excelsior do Rio, a convite de Wilton Franco. “Nessa época, o Rio era diferente de Belo Horizonte, era uma cidade muito evoluída para um mineiro, e eu era mineiríssimo, não tinha a malicia nem a malandragem que a cidade já exigia. Ai, foi uma droga! Fui muito explorado, passei fome, só tinha dinheiro para um quarto de empregada numa pensão em Copacabana. Eu viera ganhando muito menos dinheiro do que em Minas. Mas não lamento, não! Naquela pensão, meus sentimentos começaram a aflorar e eu pude aprender como é viver!”
Para sobreviver, Mauro Gonçalves precisou fazer de tudo outra vez. E fez. Até dublagem de filmes estrangeiros, sempre com a certeza de que “as barreiras existem, mas a humildade vence tudo”. Da Excelsior, ele foi para a Record de São Paulo. E dali, finalmente cumpriria seu destino: sentar no banco da praça de Manoel de Nóbrega. Depois veio a Tupi do Rio, o Café sem Concerto, onde nasceu o Zacarias, um garçom esquisito, criado por ele mesmo. No Café Renato Aragão o viu e chamou para ser um deles. Há sete anos ele encarna seu Trapalhão.
Desquitado da atriz Selma Lopes – que faz a Xicória, personagem da Turma do Lambe-Lambe – Mauro, hoje, vive sozinho. Admite o namoro com Waleska, a cantora da fossa – “uma coisa bonita com uma mulher maravilhosa” – e já é avô de duas meninas, filhas de sua única filha com Selma. Aos 48 anos ele ainda conserva a religiosidade fora do comum, uma fé inabalável, adquirida mais profundamente quando esteve desenganado pelos médicos por causa de uma osteomielite. “Uma doença sem cura, apenas com tratamento paliativo. Mas três idas ao centro, fiquei bom, uma coisa não sei explicar. Sei é que cada um precisa encontrar o deus que existe em si mesmo. E eu encontrei o meu, ali, no espiritismo, para mim muito mais uma ciência do que propriamente uma religião. Foi a umbanda de Caristas, evangelizada, “Considera a própria fé uma graça recebida e vê a morte como o começo da vida. Explica que é feliz assim: pode até passar algumas vezes, por bobo ou ingênuo demais; “Não importa! Vivo para compreender e ajudar!”
(Lucia Leme – Revista Manchete 1980)